segunda-feira, 22 de junho de 2015

FUNDAMENTOS DA COZINHA BRASILEIRA

O que existia no século XVI:

Documentários escritos sobre a terra e o povo por  Anchieta, Nóbrega, Lery, Hans Staden, dentre outros, além das cartas jesuítas, detalham as provisões, nativas e aclimatadas, descrevendo como a despensa portuguesa começou a se abrasileirar – são descrições genéricas, impessoais.
(...) Os padres eram recebidos festivamente com jantares, bailes típicos, procissões, etc; entretanto, as cartas não descrevem iguarias, mas relacionam a matéria-prima do abastecimento alimentar brasileiro, de Pernambuco a São Paulo, litoral e interior, justamente a região povoada, com engenhos de açúcar, habitada pela nascente aristocracia rural, com os escravos indígenas e africanos.
A Bahia “é terra farta de mantimentos, carnes de vaca, porco, galinhas, ovelhas e outras criações”. .
“A terra tem muitas frutas, ananazes, pacobas e todo o ano há frutas nos refeitórios... Legumes não faltam, da terra e de Portugal; berinjelas, alfaces, couves e outros legumes e hortaliça”. Sobre o Colégio dos Jesuítas “(...) sustentam-se bem de mantimentos, carne e pescados da terra; nunca falta um copinho de vinho de Portugal (...)”
Descrevendo uma visita dos padres a uma aldeia do Espírito Santo, diz que os hospeda “um homem rico, com todas as aves e caças e outras muitas iguarias, e ele mesmo servia a mesa. Os indígenas oferecem na aldeia patos, galinhas, leitões, farinha, beijus com algumas raízes e legumes da terra”.
Em Camamu: “ A enseada traz muitos pescados e peixes-boi; os lagostins, ostras e mariscos não têm conta”.  Ilhéus “é terra abastada de mantimentos, criações de vacas, porcos, galinhas. Laranjeiras, limoeiros, coqueirais pela praia”.
Em Porto Seguro “uma índia cheia de queijadinhas d´açúcar. Vacas, porcos, peixes, lagostins, mariscos, aves, perus legumes, frutas,vinhos feitos de várias frutas, leite, requeijão, natas, manjar branco, cajus.”
A horta dos jesuítas em Pernambuco “tinha maracujá, romãs, figueiras, melões.”
Aldeias indígenas: “peixinhos de moquém assados, batatas, carás, mangará.”
Espírito Santo: capitania “rica de gado, laranjeiras, limeiras doces,cidreiras,cajus (...)”

ALIMENTAÇÃO INDÍGENA

1650: mais de 600 nações – diversidade de culturas, tipos raciais e línguas. Influenciou a culinária mundial através do intercâmbio após o descobrimento: tomates, batatas, mandioca, abacate, pimentas, pimentões, chocolate, guaraná, etc.
Amazônia e costa brasileira: alimentação básica era a mandioca e os diferentes produtos dela retirados (depois de raladas e espremidas) originavam os alimentos básicos das primitivas populações brasileiras. Do líquido venenoso que resultava do prensamento (no tipiti) fermentado ao sol e fervido, obtinha-se a manicuera ou o tucupi, usado como caldo, com batata-doce, cará-roxo ou branco ou frutas, carnes e peixes, etc.
A massa prensada era base dos beijus assados no forno de argila. Do amido puro fazia-se o polvilho. O segundo alimento básico era o peixe consumido moqueado (assado e defumado numa trempe de madeira; carne de caça era alimento secundário). Na Amazônia eram consumidos, ainda, lagartos, cobras, jacarés e todos os tipos de quelônios e seus ovos, preparados de diversas formas. Outras fontes protéicas: insetos (cupins, tanajuras, besouros e gafanhotos, etc.) A antropofagia  era comum.
Outros alimentos secundários e complementares: milho (mingaus, assado, cozido, etc.), batatas-doces, carás-roxos e brancos, feijões, morangas, etc. As frutas eram abundantes: abacaxi, ananás, abacate, matapi, ingá, jatobá, açaí, bananas, cajus, etc.
Bebidas fermentadas, muitas pela saliva, originadas da mandioca, milho, etc. Chocolate, produzido com as sementes de cacau, torradas e piladas; depois era tomado com água, amargo. Temperos: pimentas variadas.
                                                             Antônio José Souto Loureiro – membro do Instituto
                                                             Geográfico e Histórico do Amazonas.

CONTRIBUIÇÃO PORTUGUESA

Influência decisiva na gastronomia do Brasil. Lisboa tornara-se o centro da Europa: comia-se de variados   modos, com gostos exóticos. Entretanto, a alimentação do povo continuava respeitando as tradições árabes e os preconceitos religiosos. Comia-se peixe, mais do que carne (alimento para privilegiados) acompanhado de arroz e cuscuz. Consumiam-se tripas e tutanos, mariscos, pão, mel e queijos, doces.
No século XVII, a ligação de Portugal com a Espanha refina a cozinha. Desta forma, o português trouxe  para o Brasil modos de preparar, dosear, confeccionar, temperar e conservar os alimentos, além dos utensílios, as horas das refeições, a ordem dos pratos, os pesos e as medidas e os preconceitos.
A partir de 1570, com a abertura do território aos colonos, principalmente nas regiões de Pernambuco, chegam, também, os escravos negros. Os povoados transformam-se em portos e cidades; os costumes alimentares são renovados com os novos produtos trazidos por viajantes, particularmente da Índia. Eram comuns o uso e abuso de especiarias, óleos, malaguetas e outros produtos exóticos, reutilizados e adaptados às receitas inéditas.  A maior parte dos cozinheiros era serviçal europeu, ajudado por escravos, o que propiciou uma troca interessantíssima.
À  medida que se desenvolvia a sociedade brasileira, cresciam as exigências de melhor cozinha. Os conventos, com suas tradições doceiras – sonhos, pão-de-ló, manjar branco, etc. -, as aldeias jesuítas com suas culturas e regras alimentares, os quartéis com suas cozinhas de “rancho” e a fixação de novos núcleos populacionais junto dos engenhos e das minas são fatores de diversificação, através da apropriação de tipologias de cozinhas. Aparecem novas formas de preparações: os caldos, as caldeiradas, os ensopados, com uso de sal, de pimenta e outros condimentos.
O engenho, com o cultivo da cana-de-açúcar, a fabricação de aguardente e de outros sub-produtos que serviam para alimentar rebanhos e animais domésticos, permitia que o português usufruísse alimentos que apreciava: a canja e o cabrito assado. Os portugueses também conheciam a salga e secagem de carnes.
A gastronomia está ainda ligada à mineração, que permitiu o desenvolvimento do comércio de importação e de comercialização de alimentos, criando novos hábitos alimentares: o paio, o presunto, o azeite, os queijos, as marmeladas, os vinhos, o vinagre e as aguardentes vinícolas. Sempre que podia, o português  praticava sua cozinha: uso do tomate, da batata  - base de sopas e companheira indispensável do bacalhau cozido, assado ou em pastelinhos.
A culinária toma formas específicas em cada uma das zonas do Brasil: nas roças e nas áreas de mineração. Numa, preparar-se-iam novos alimentos como a canjica fria e grossa para os brancos e outra para os negros, assim como cuscuz e pipocas, bolos e biscoitos. Noutra, a base da alimentação assentar-se-ia  nos produtos importados, que criariam novos gostos e diferentes maneiras de preparos.

Final  do século XVIII: aumenta o cultivo do café.
Estabelecimento da Corte Portuguesa no Brasil: culinária vai europeizar-se, pois os hábitos e segredos gastronômicos da Corte rapidamente se difundiriam pelas camadas superiores.
Entretanto, nas cidades, os botequins cozinhavam os pratos e as iguarias que o brasileiro recolhera nesse longo processo de adaptação e de recriação, que poderiam ser denominados de “cozinha de botequins”.
                                                                                             Carlos Consiglieri e Marília Abel
                                              Investigadores na área de Gastronomia Patrimonial Portuguesa

AS DIETAS AFRICANAS

A cozinha regional que se formou no Nordeste brasileiro – Recôncavo Baiano – também chamada cozinha baiana ou “comida de azeite” (referência ao azeite de dendê), deu a cor e o gosto às comidas afro-brasileiras e definiu a participação africana no sistema alimentar brasileiro. As pimentas são, também, identificadoras desta “cozinha de azeite”. Apesar de serem usadas pelos índios, foi a cozinha africana que as popularizou.
Vatapás, mocotós, carurus, mingaus, pamonhas, canjicas, acarajés, abarás, arroz de coco, angus, pão-de-ló de arroz eram comidas vendidas pelos escravos e libertos nas ruas da Bahia no século XVIII, ao lado de alimentos tipicamente indígenas, e da doçaria de origem portuguesa.
Os ritos religiosos dos africanos restabeleciam as oferendas na forma de uma “cozinha dos deuses”. Nesse período foram recriadas muitas das comidas cotidianas dos homens e dos santos. Esse foi o tempo do cozinheiro e da cozinheira escravos, que reproduziam o cardápio basicamente português, mas já substituindo, trocando ingredientes, colorindo os ensopados com o vermelho do dendê, inventando variedades de moquecas; usando o inhame, a banana cozida ou frita no azeite; recriando o caruru, o vatapá. Pratos novos com um sabor antigo – que era o deles – e um gosto novo – que  eles aprenderam.
Exemplos de comidas de santo: ebô – milho branco cozido sem sal oferecido a Oxalá e, em dias de festas para os  membros da comunidade e  visitantes, servido sobre uma folha e comido naturalmente, sem colher. “Caruru de São Cosme” – feijão-fradinho, camarão seco, quiabo, galinha, azeite-de-dendê.

Fora do candomblé, essa cozinha africana (tanto nos ingredientes como nas técnicas de preparo) está presente não só na comida cotidiana do povo, mas também nas celebrações e nas festas populares, na hospitalidade a visitantes, nos almoços e nos restaurantes turísticos.

                                                                                                              Vivaldo da Costa Lima
                                                              Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia.


BIBLIOGRAFIA 

CASCUDO, Luis da Câmara. História da alimentação no Brasil. Vol.2. Belo Horizonte: editora Itatiaia; São Paulo: editora da Universidade de São Paulo, 1983.
FERNANDES, Caloca. Viagem gastronômica através do Brasil. 5a. ed – São Paulo: Editora Estúdio Sonia Robatto,2003.
FLANDRIN, Jean – Louis; MONTANARI, Massimo. História da alimentação.  Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1996.

LEAL, Maria Leonor de Macedo Soares. A história da gastronomia. Editora Senac Nacional, Rio de Janeiro, RJ, 1998.

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